Em um ambiente acolhedor, com brinquedos, livros coloridos, bonecos de pelúcia e distinto da formalidade característica dos prédios do Poder Judiciário, uma criança relata caso de violência. Em outra sala, profissionais que atuam no processo – juiz, promotor e defensores – acompanham a entrevista sem ter contato com a depoente.
Essa situação retrata o procedimento conhecido por “depoimento especial”, técnica humanizada para oitiva de menores vítimas ou testemunhas de violência e abuso sexual, obrigatória a partir da edição da Lei n. 13.431, de 4 de abril de 2017, que fixou prazo de um ano para adoção da escuta especializada pelos tribunais, embora o método já estivesse sendo adotado pelo Judiciário paulista, com base na Recomendação n. 33/10, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O depoimento é colhido na “sala especial”, na presença de psicólogo e/ou assistente social capacitado, e a conversa é transmitida ao vivo para a sala de audiência. O ato processual fica gravado e é anexado aos autos para evitar que a criança seja ouvida em outras fases da ação ou em eventual recurso, evitando, dessa forma, sua revitimização.
No Estado de São Paulo, o depoimento especial teve início em 2011, com projeto- piloto implementado em São Caetano do Sul, Atibaia e Campinas, sendo a comarca do ABC paulista a primeira a utilizá-lo, conforme relato do juiz Eduardo Rezende Melo, da 1ª Vara Criminal e de Crimes contra Crianças e Adolescentes. “Fazemos uso do depoimento especial desde 2011 e temos tentado utilizá-lo sempre que possível, pois representa um novo momento, no qual se reconhece o direito de a vítima ter um atendimento o mais acolhedor possível. Os resultados são muito positivos, pois a metodologia nos tem permitido afastar situações de falsas acusações e casos de alienação parental.”
O Tribunal de Justiça ampliou, ao longo dos anos, o número de salas instaladas no Estado e conta, atualmente, com 20 no interior e grande São Paulo e oito na Capital – sete nas Varas de Violência Doméstica e uma no Setor de Atendimento de Crimes da Violência contra Infante, Idoso, Pessoa com Deficiência e Vítima de Tráfico Interno de Pessoas (Sanctvs), unidade especializada vinculada à 16ª Vara Criminal da Capital. “As crianças e adolescentes ouvidos na sala de depoimento especial do Sanctvs são aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade e, por esse motivo, devem ser protegidos. Essa é uma metodologia aplicada em diversos países e que tem produzido excelentes resultados no âmbito do Judiciário paulista”, explica a juíza Maria Domitila Prado Manssur, assessora da Corregedoria Geral da Justiça e que já atuou no Sanctvs.
Para o desembargador Reinaldo Cintra Torres de Carvalho, vice-coordenador da Infância e Juventude do TJSP, a utilização da metodologia tem proporcionado benefícios que vão além do correto acolhimento de crianças e adolescentes. “Trata-se de uma ferramenta que nos possibilita acolher bem crianças e adolescentes e, ao mesmo tempo, buscar a verdade real dos fatos e dar uma resposta adequada ao litígio, pois, por meio dela, conseguimos criar o ambiente ideal para que eles se expressem da melhor maneira possível.”
Os psicólogos e assistentes sociais que atuam durante o depoimento especial passam por curso de capacitação, atualmente realizado pela Escola Judicial dos Servidores (EJUS) e que aborda técnicas de entrevista e questões sobre abuso e violência, além de debate acerca da legislação relacionada ao tema e discussão de trabalho em rede e políticas públicas. Magistrados serão capacitados pela Escola Paulista da Magistratura (EPM) e há atuação por parte da Presidência para fornecer a estrutura necessária para ampliação do sistema a todas as unidades do Estado. “A Presidência do Tribunal está trabalhando para tornar viável a colheita dos depoimentos por meio de aplicativo de mensagens e chamadas de áudio e vídeo já usado no TJSP, permitindo que todas as unidades possam utilizá-lo. O mecanismo está em fase de testes e deverá ser implementado em breve”, destaca a juíza assessora da Presidência Camila de Jesus Mello Gonçalves.
“A meta é que tenhamos salas e profissionais capacitados no Estado todo para poder oferecer esse serviço, que agora é direito decorrente de lei, de forma ampla”, esclarece o juiz Daniel Issler, da Vara da Infância e da Juventude, Atos Infracionais e Medidas Socioeducativas da Comarca de Guarulhos, e integrante da Coordenadoria da Infância e da Juventude do TJSP (CIJ), que ressalta a importância da atuação em conjunto dos diversos setores do Judiciário paulista para o funcionamento e sucesso da metodologia. “O depoimento especial é um grande avanço para o nosso sistema de Justiça, em perfeita sintonia com os princípios constitucionais da proteção à pessoa e os direitos humanos. É fazer valer o direito à dignidade das vítimas”, destaca Daniel Issler.
N.R.: texto originalmente publicado no DJE de 4/4/18.
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