Cegueira inexistente de um deficiente visual – história e superação
Na vida surgem fatos que mudam a trajetória e a escolha do novo caminho depende, muitas vezes, da própria ‘vítima’. Foi assim que aconteceu com o escrevente-técnico da Comarca de Presidente Epitácio, Paulo Ricardo Jakibalis, o entrevistado deste mês do Projeto Jus_Social. Paulo, que teve parte da infância feliz e saudável no Paraná, ficou órfão de mãe vitimada por um câncer aos 33 anos. Seu pai (Jak), responsável pelo sustento da casa e dos quatro filhos menores (2, 12, 13 e Paulo com 9 anos), casou-se e sua nova esposa possuía três crianças (6, 8 e 9 anos). Era uma casa de duas pessoas que acabaram de se conhecer e com sete filhos para criar...
Aos 14 anos, Paulo estudava em um Colégio Agrícola, em Ponta Grossa (PR), e voltava para casa nos finais de semana. Logo seu pai foi transferido para Monte Alto (SP) e, por consequência, somente em julho e nos finais de ano voltava para visitar a família. Ao terminar o antigo 2º grau (em 1º lugar) voltou para a casa paterna e, nessa altura, com 19 anos, arrumou emprego de auxiliar de escritório em uma transportadora. Vida estabilizada, emprego, namorada e nenhuma grande preocupação. Meses depois, colidiu com uma árvore e o rosto e os dois olhos foram afetados pelos estilhaços de vidros do para-brisa do veículo que dirigia. Nova mudança abrupta em sua vida, depois de vários especialistas, o diagnóstico unânime: "a medicina atual nada mais pode fazer no seu caso... a cegueira é irreversível!". O jovem ficou sem ação, não conseguiu reagir, sentiu um vazio profundo.
No ano seguinte ficou "sobrevivendo", segundo ele, sem nenhuma expectativa ou objetivo. Não tinha planos, só vivia o presente, um dia após o outro até o momento que Jak o levou ao perito do INSS para requerer a aposentadoria por invalidez. Para sua surpresa, foi o início de seu fortalecimento. O médico repreendeu duramente o pai dizendo que era a hora de investir nele e não de querer aposentar um jovem de 21 anos. O laudo foi concedido com a condição de ser provisória e que ele fosse 'desaposentado' assim que inserido novamente no mercado de trabalho. Paulo começou a refletir que era preciso ter alguma atitude em relação a si mesmo, parar de sentir autopiedade, voltar a 'viver' com autonomia e independência, principalmente. Tempos depois, frequentou por um ano uma escola especializada em reabilitar deficientes visuais em Campo Grande (MS) e aprendeu a andar sozinho com o auxílio da bengala, reaprendeu a ler e escrever (Braille) e aceitou e enfrentou sua condição de deficiente visual. A partir daí traçou um plano de fazer uma faculdade e escolheu o curso de Direito.
Mundo jurídico – A faculdade recusou sua inscrição e o reitor tentou convencê-lo de que a instituição não oferecia estrutura. Paulo rebatia dizendo que dominava a escrita em Braille e datilografia e que possuía os materiais necessários para acompanhar as aulas e realizar as provas. Como os argumentos eram conflitantes de ambos os lados, o reitor convocou uma reunião com outros dirigentes e, por fim, resolveu aceitar a inscrição para o vestibular. A prova foi realizada em sala separada, acompanhado de uma 'ledora' que falava o teor das questões. Ele anotava as respostas em Braille e, no final, a funcionária colocava no gabarito. Prova de redação, fez na máquina de escrever da faculdade e foi aprovado em 93ª lugar de um total de 150 vagas e mais de 1.200 inscritos. Foi sua grande segunda vitória!
Viajava de segunda a sábado de ônibus escolar de Presidente Epitácio para Presidente Prudente (93,1 km). Saía as 17h30 e voltava às 0h30. No terceiro mês das aulas, seu pai foi transferido de cidade e Paulo decidiu não acompanhá-lo. Apesar de contrariado, Jak concordou e Paulo foi morar em um quarto na casa da irmã da então namorada, pagando mensalmente a moradia e a alimentação com dinheiro enviado pelo pai. As despesas pessoais eram pagas com o salário mínimo que recebia da aposentadoria. Para estudar, prestava muita atenção nas explicações dos professores e fazia as anotações com seu equipamento manual de escrita em Braille. Já quando a matéria era escrita no quadro, tinha que ter a ajuda de algum colega para ditar o que o professor escrevia. “Para complementar os estudos, contava com a colaboração de colegas para gravar em áudio os capítulos dos livros. Concluiu a faculdade em 1994, sem ficar para exame em nenhuma matéria.” Foi homenageado pelos colegas que deram seu nome à turma de formandos.
TJSP na sua vida – No ano seguinte passou no exame da OAB e começou a estudar para concurso público em busca de estabilidade e remuneração fixa. Prestou dois concursos, um para advogado da Prefeitura de Epitácio e outro para escrevente técnico do Tribunal de Justiça. Contudo, menos de um ano após sua formatura, o pai parou de enviar o dinheiro da 'pensão'. Passados dois meses sem pagar a moradia foi convidado a se retirar. Nessa hora, lembrou-se de duas senhoras conhecidas de seu pai. Havia uma que morava em uma casa grande e... Sozinha. Explicou a ela o seu problema e “ela, gentilmente, permitiu que morasse em um quarto nos fundos da casa”. Nesse meio tempo, ficou sabendo que havia passado nos dois concursos. A nomeação ao cargo de advogado só veio mais de ano depois, em março de 1997, ocasião em que solicitou o cancelamento da aposentadoria e recuperou grande parte da sua autoestima. Trabalhava na área em que se formou e ganhava seu próprio salário. Não dependia mais do dinheiro do pai. “Voltei a me sentir 'eu mesmo novamente'!, revela.
Paulo comprou o primeiro computador e começou a mexer com auxílio do programa gratuito leitor de tela e tudo que é digitado chamado 'Dosvox', sua grande ferramenta para desenvolver as atividades com independência. Trabalhou um ano na prefeitura e foi nomeado no TJSP. Alugou e mobiliou uma casa e foi morar só: assim estaria totalmente realizado e independente. Iniciou essa nova fase em fevereiro de 2000. Paulo Ricardo conta que, a partir daí, tudo era alegria. Tinha liberdade para ouvir música, ‘assistir’ a qualquer canal de televisão, podia receber pessoas em casa, dormir e acordar tarde, ir ao banheiro de porta aberta (risos); enfim, viver sem limitações ou imposições de ninguém. “A maior limitação já estava em mim mesmo, na falta de visão, esta é a maior prisão que poderia enfrentar na vida. Só eu posso enfrentá-la e superá-la, diariamente, desde a hora que acordo até a hora de dormir, adaptando-me às novas realidades e vencendo os obstáculos do dia a dia.”
Hoje, com o computador e o Dosvox exerce de forma independente a atividade forense. Para facilitar a acessibilidade, o Tribunal disponibilizou um programa leitor de tela chamado 'Window Eyes', que acessa praticamente 100% do sistema SAJ que permite que digite e imprima as reclamações no balcão do Juizado Especial Cível – cartório no qual trabalha – e ainda permite pesquisa e emissão de certidões. Paulo Ricardo deixou o corregedor-geral da Justiça, desembargador Hamilton Elliot Akel, impressionado na visita que fez à comarca e já foi até convidado a proferir palestras motivacionais pela Secretaria de Educação do Município e Instituto Federal de cursos profissionalizantes. No final de 2014, trocou o antigo celular, com teclado físico, por um exclusivamente de toque na tela porque a tecnologia de leitores de tela em smartphones permite que use o aparelho com total autonomia e independência e isso facilita seu dia a dia. Equipou-se telefone fixo que fala o número de quem está ligando, aparelho que identifica quando a lâmpada está acesa ou apagada e relógio de pulso falante. Preocupado com o corpo, adquiriu uma balança de banheiro que “fala” o peso e, para não perder o pique, montou uma pequena academia de musculação em um dos quartos, onde treina três vezes por semana. “Agora, aqui estou, trabalhando no fórum, morando sozinho com total independência, com um filho de nove anos, que mora com a mãe e passa os finais de semana comigo, e um ‘dalmalata', mistura de dálmata e vira-latas.” Hoje, “ao lado de uma namorada maravilhosa chamada Kátia”, diz ele, a vida prossegue enxergando através da cegueira.
Mensagem – “Perdi os faróis, mas o motor continua a fazer o carro correr na estrada da vida, sempre prestando atenção nas placas de sinalização.” Paulo Ricardo encerra ressaltando Mário Quintana, em “A idade de ser feliz”.
Comunicação Social TJSP – LV (texto) – Arquivo (fotos)
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