Enxergar além dos olhos faz parte da vida de Roberto Carlos

        Nem o rei, nem a rainha, nem cavalo, nem torre, nem peão, nem mesmo o bispo impede o servidor do fórum de Itapecerica da Serra, Roberto Carlos Hengles de dominar o tabuleiro em campeonatos de xadrez. Ele, inclusive, representou o Brasil no exterior. Até aí nenhuma novidade, acontece que esse campeão - da vida e do xadrez -  é deficiente visual.

        Essa história, a da deficiência, começa em 1994 quando recebeu um tiro. Seu pai era taxista e Roberto foi acompanhá-lo numa corrida. Os passageiros eram bandidos e ao descerem do táxi, o rapaz pediu à moça que lhe passasse o negócio. “Eu pensei que fosse a carteira, mas era um 38. Ele avisou que a arma não era de brinquedo, que queria o carro e ordenou que ligasse o motor se não arrebentaria as nossas cabeças.” Infelizmente, quando o pai ligou o carro de forma acelerada pelo nervosismo ali instalado, o bandido atirou no Roberto, seu pai saiu em disparada e o bandido continuou atirando no carro. Ele foi socorrido, fez cirurgia e ficou na UTI. “Só estou vivo graças ao senhor Jesus Cristo”, declara.

        Roberto Carlos fez parte da família forense por dois anos como escrevente técnico judiciário no final da década de 80; depois trabalhou em empresa privada e foi professor. Em 2000, fez concurso para escrevente e concorreu à vaga para deficientes. Sua classificação foi em segundo lugar nas duas vezes que ingressou no Tribunal de Justiça de São Paulo.

        A deficiência não o impediu de se tornar bacharel em Direito. Os amigos providenciavam as aulas e outros amigos que nada tinham a ver com o curso liam para ele. Dessa forma, estudava para as provas e conseguiu concluir o curso.

        Para se preparar para o concurso do TJSP não foi diferente. Roberto Carlos afirma que por já ter trabalhado no Tribunal e a graduação em Direito contribuíram para seu sucesso, mas o apoio decisivo foi dado pelos amigos que foram seus olhos na leitura do material de estudo.

        Atualmente, Roberto Hengles trabalha no pabx no fórum de Itapecerica. Como o pabx é antigo (tem oito botões, oito linhas e ainda os ramais) ele ainda sofre em acertar quais linhas estão tocando. Tem que ir apertando os botões para acertar. “Muitos tocam com maior frequência então já tento direto neles.”

        Mesmo sem enxergar fez o curso de estenotipia no Tribunal e trabalhou como estenotipista quase um ano. Quando fez o curso, os funcionários gravaram a apostila de estenotipia para ele. “O Valter (referindo-se a Valter Nogueira Magalhães) era o responsável e Eliete a coordenadora. Agradeço muito a eles e a todos do Núcleo de Estenotipia do TJSP, que me deram muito apoio, acreditaram na minha capacidade.”

        Roberto fez também a atualização desse curso. Foi a juíza Roberta de Toledo Manzano Domingues que o encaminhou. “Ela ficou sabendo que tinha o curso e me encaminhou para a atualização. Fui aprovado na primeira vez e muito bem recebido. Havia pessoas no curso que tinham tentado mais de uma vez e não conseguiram a aprovação, mas eu consegui”, ressalta feliz.

        O juiz diretor do fórum de Itapecerica, Antonio Augusto Galvão de França Hristov disse que “apesar da deficiência, o Roberto exerce um bom trabalho na administração e tem uma desenvoltura muito grande com os colegas. Sempre damos apoio para continuar participando de campeonatos”.

        Hengles começou a jogar xadrez com sete anos de idade na Biblioteca Municipal de Itapecerica. Quando tinha 19 já jogava torneios oficiais; foi campeão em Itapecerica por duas vezes. A perda da visão fez com que parasse totalmente de jogar e de cursar administração.

        Mas, foi em 2000 que descobriu que dava para continuar, quando soube que existia tabuleiro para deficientes. “Eu jogava o xadrez de memória, não sabia que existia o tabuleiro adaptado a deficientes visuais. Retornei ao jogo quando estava na faculdade de Direito. O aluno que se classifica para representar a faculdade nos jogos universitários não pagava duas mensalidades, uma no primeiro e outra no segundo semestre. Acabei representando em todos os semestres e competia com quem enxergava, ficando em 3º lugar.” Segundo Roberto, o melhor resultado da época até então era o dele.

        Começou a competir além dos jogos universitários, em campeonatos com deficientes visuais, foi vice-campeão brasileiro e hexa campeão brasileiro na modalidade de enxadrista na categoria deficiência visual. Em 2001 atingiu a 1ª colocação no ranking nacional em deficiência visual. Participava de competições em vários Estados (Minas Gerais, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo). Onde tinha campeonato lá estava ele.

        Em 2011 recebeu medalha de prata latino americana de xadrez em competição realizada na Bolívia. Roberto também participa de campeonatos com jogadores portadores de deficiência visual subnormal (enxergam um pouco) e já obteve nessa modalidade o segundo lugar. Na B1 (deficiência visual total) ficou em primeiro lugar. Em campeonatos internacionais realizado no Brasil foi quatro vezes prata e três vezes ouro. Em 2008, representou o Brasil na Olimpíada da Grécia.

        No exterior já competiu na Polônia, Turquia, Espanha, Índia, Grécia, Argentina, Bolívia, Uruguai. Hoje (1º/12) ele está no Equador atendendo a convocação da Confederação Brasileira de Xadrez de Deficiência Visual para participar de competição que vai de amanhã (2) a domingo (4).

        Roberto Carlos tem muitas histórias para contar e ainda se diverte com os acontecimentos. Para a repórter deste texto, contou que participou de uma competição em que o adversário que enxergava falou que ele levava vantagem por ter a possibilidade de tocar nas peças antes de realizar o lance por ser deficiente e os “não deficientes” só de tocar na peça teria que jogar. Então Roberto falou ao adversário que se ele quisesse poderia chamar o árbitro para por um venda nos olhos dele (adversário) para que ele (Roberto) não tivesse mais essa vantagem. O adversário se calou!

        O enxadrista relatou também que por inúmeras vezes aconteceu de pedir informação em relação algum local que tivesse que ir e as pessoas descreveram paisagens ou cores. “Normalmente informam que o local procurado fica ao lado da casa de cor tal com um portãozinho tal.” Ele afirma ainda que já houve vezes em que a pessoa que estava de braços dados a ele ter desviado de um obstáculo e ele colidiu.

         Projetos - Os projetos não param. Em 2012 pretende lançar um livro, que está sendo revisado. É sobre xadrez iniciante para deficientes visuais. Segundo Roberto Carlos, não há no Brasil livro de xadrez para deficiente visual e sua obra será em tinta e em braile. Também em 2012, vai disputar uma das cinco vagas para representar o Brasil nas olimpíadas da Índia e está muito esperançoso.

        Para competir, disse que enfrenta algumas dificuldades financeiras, pois até o campeonato de 2006 o governo federal pagava a participação dos brasileiros, mas atualmente não existe mais a ajuda e ele tem que pagar do seu bolso. Muito raramente consegue alguma doação. Outra dificuldade encontrada é a impossibilidade de um bom programa de voz para seu notebook e celular. O que usa é somente um “quebra-galho” pois o original custa muito caro.

        No entanto, nem a deficiência nem as dificuldades tiram de Roberto a alegria de viver e de sorrir, motivação para continuar sua caminhada. Mesmo sem conseguir ver com os olhos ele enxerga além deles e deixa uma mensagem: “Deus ilumine a vida de todos. Quando acontece alguma diversidade na nossa vida, Deus sempre prepara um caminho para iluminar os nossos passos. Deus está aí para nos ajudar a continuar a nossa vida! Foi Deus que me abençoou. Tenho apoio do Tribunal de Justiça, por meio dos juízes e funcionários, que me apoiaram no curso e me apóiam na competição. Graças a Deus que tudo deu certo!”

        NR1: No último dia de cada mês, o GACS publica notícia diferente do padrão técnico-jurídico-institucional.

        NR2: Participe. Envie sugestões de pauta sobre magistrados e servidores do Poder Judiciário para o e-mail da Comunicação Social.


        

        Comunicação Social do TJSP – LV (texto e fotos)

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