O Plenário entendeu ser um direito da mulher interromper a gestação, em um dos julgamentos mais emblemáticos da história da Corte.
Em abril de 2012, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a gestante tem liberdade para decidir se interrompe a gravidez caso seja constatada, por meio de laudo médico, a anencefalia do feto - condição caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana. A decisão foi tomada, por maioria de votos, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS).
A partir do entendimento firmado, o STF declarou inconstitucionais interpretações que enquadrassem a interrupção da gravidez nessas condições nos artigos do Código Penal que criminalizam o aborto. Ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (aposentado), que votaram pela improcedência do pedido formulado na ADPF.
Cárcere no próprio corpo
A maioria seguiu entendimento do relator da ação, ministro Marco Aurélio (aposentado), para quem é inadmissível que o direito à vida de um feto que não tem chances de sobreviver prevaleça “em detrimento das garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe, todas previstas na Constituição”. Em seu voto, ele afirmou que obrigar a mulher a manter esse tipo de gestação significa colocá-la em uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”.
O ministro Joaquim Barbosa e a ministra Rosa Weber também consideraram a liberdade da gestante para optar sobre o futuro de sua gestação, no caso de feto anencefálico. “Essa liberdade de escolha ocorre em função do princípio da dignidade da pessoa humana, inscrito no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal”, afirmou a ministra. Já para o ministro Luiz Fux, obrigar a mulher a manter a gestação seria submetê-la a uma tortura, o que também é vedado pela Constituição.
Aborto x antecipação terapêutica
Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia enfatizou que “não há bem jurídico a ser tutelado pela norma penal que possa justificar a impossibilidade total de a mulher fazer a escolha sobre a interrupção da gravidez”. O ministro Ayres Britto (aposentado) destacou que, em caso de anencefalia, as mulheres carregam no ventre “um natimorto cerebral, sem qualquer expectativa de vida extrauterina”, e que obrigar a mulher a manter essa situação seria um tratamento cruel.
Para o ministro Gilmar Mendes, desde a edição do Código Penal, em 1940, a sociedade brasileira convive com a descriminalização do aborto em casos de estupro e de risco à saúde da mãe. “A possibilidade de aborto de fetos anencéfalos está autorizada desde então, tendo em vista que, comprovadamente, a gestação nesses casos traz graves riscos à saúde da gestante”, assinalou.
O ministro Celso de Mello destacou, ao votar, que até então, em toda sua carreira jurídica, nunca tinha participado de um julgamento “de tamanha magnitude, envolvendo o alcance da vida e da morte”. Ele ressaltou o que considera uma “grande diferença entre legalização do aborto e a antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia”.
Competência legislativa
Primeiro a divergir no sentido da improcedência do pedido, o ministro Ricardo Lewandowski observou que um tema de tamanha complexidade e relevância deveria ter o crivo do Congresso Nacional, após amplo debate com a sociedade. Segundo ele, havia propostas legislativas em tramitação, e o acolhimento da ADPF configuraria usurpação da competência privativa do Legislativo para criar outra causa de exclusão de licitude.
Na mesma linha, o ministro Cezar Peluso (aposentado), presidente do STF na época, defendeu que a questão deveria ser tratada com cautela redobrada, “diante da imprecisão do conceito, das dificuldades do diagnóstico e dos dissensos em torno da matéria”. Para ele, não cabe ao STF atuar como legislador positivo, e o Legislativo não incluiu o caso dos anencéfalos nas hipóteses do Código Penal que autorizam o aborto.
Audiência pública
Em setembro de 2008, a controvérsia sobre a interrupção da gravidez em caso de anencefalia foi tema de grande debate no STF, numa audiência pública que contou com a participação de 25 expositores de entidades religiosas, científicas, médicas e da sociedade civil, em quatro dias de encontro.
Naquela época, o advogado que representava a CNTS, autora da ação, era Luís Roberto Barroso, hoje ministro do STF. Na audiência, ele defendeu que a anencefalia é letal em 100% dos casos, sendo que 50% morrem ainda durante a gravidez. Nesses casos, a interrupção deve ser tratada como antecipação terapêutica do parto, e não como aborto.
Agenda 2030
A série de matérias "O STF e os direitos das mulheres" está alinhada com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), que visa alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.
Leia a íntegra do acórdão do julgamento da ADPF 54.
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Fonte: Supremo Tribunal Federal