NÚCLEO DE GERENCIAMENTO DE PRECEDENTES E AÇÕES COLETIVAS

Comunicado

"Revisão da vida toda": destaque e remessa do processo para o Plenário presencial

Por Alexandre Freitas Câmara e Cassio Scarpinella Bueno

Fato recente chamou a atenção da comunidade jurídica: o pedido de destaque, formulado pelo ministro Nunes Marques, do STF, no julgamento do RE 1.276.977, em que o Supremo Tribunal Federal vai definir, pelo regime da repercussão geral, a assim chamada "revisão da vida toda". Embora o tema de fundo tenha de ser analisado pelos estudiosos do Direito Previdenciário — que já estão a se mobilizar para tratar do assunto —. os processualistas civis não podem ficar de fora desse debate. É que esse pedido de destaque traz consigo uma relevante questão de Direito Processual Civil: iniciado o julgamento no plenário virtual (em que já se contabilizavam onze votos, tendo sido formada maioria, por 6 votos contra 5) e remetido o processo para o plenário presencial, é preciso saber quem poderá ainda proferir votos. Isso porque, no caso presente, foi contabilizado no plenário virtual o voto do relator, ministro Marco Aurélio, que posteriormente se aposentou, sendo substituído pelo ministro André Mendonça. Põe-se, então, a questão de saber se, no plenário presencial, deverá ser computado o voto de Marco Aurélio, ou se aquele voto será desconsiderado para que André Mendonça, seu sucessor, possa votar.

A questão se torna relevante do ponto de vista do resultado do julgamento, dado que o ministro Marco Aurélio proferiu voto que integra essa apertada maioria (6 a 5) que se formou no plenário virtual, de modo que no caso de vir a ser desconsiderado o voto por ele proferido, e vindo a votar o ministro André Mendonça, há a possibilidade de modificação do resultado final mesmo que nenhum outro integrante do STF altere seu próprio voto.

A possibilidade de um pedido de destaque levar o processo do ambiente eletrônico para o plenário presencial tem previsão no artigo 21-B, §3º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, assim redigido, após a Emenda Regimental n. 53/2020:

Art. 21-B. Todos os processos de competência do Tribunal poderão, a critério do relator ou do ministro vistor com a concordância do relator, ser submetidos a julgamento em listas de processos em ambiente presencial ou eletrônico, observadas as respectivas competências das Turmas ou do Plenário.
(…)
§ 3º No caso de pedido de destaque feito por qualquer ministro, o relator encaminhará o processo ao órgão colegiado competente para julgamento presencial, com publicação de nova pauta.

A questão, do ponto de vista processual, é saber se esse pedido de destaque desconstitui o julgamento já iniciado em ambiente eletrônico, para que novo julgamento seja realizado em ambiente presencial, ou se a hipótese é, tão somente, de continuação de um julgamento já iniciado apenas com a transferência de ambiente.

Perceba-se a relevância da questão, para a qual se busca, aqui, uma resposta: caso se trate de um novo julgamento, todas as manifestações já apresentadas na deliberação eletrônica são simplesmente desconsideradas, e tudo se realizará novamente, fazendo-se essencial, inclusive (em casos como o do RE 1.276.977, cujo relator original está agora aposentado), que o ministro André Mendonça assuma a relatoria do caso (nos termos do art. 38, IV, a, do Regimento Interno do STF) e seja o primeiro a proferir voto. De outro lado, caso se considere que há, aí, uma mera prorrogação do julgamento, doravante em ambiente presencial, o voto do ministro Marco Aurélio deve ser computado e não poderá ser alterado, conforme o disposto no artigo 941, §1º, do CPC, que tem a seguinte redação: "O voto poderá ser alterado até o momento da proclamação do resultado pelo presidente, salvo aquele já proferido por juiz afastado ou substituído".

A Resolução nº 642/2019 do STF, modificada quanto ao ponto pela Resolução n. 669/2020) trata do tema, e assim dispõe:

Art. 4º Não serão julgados em ambiente virtual as listas ou os processos com pedido de destaque feito: (NR)
I - por qualquer ministro; (NR)
II - por qualquer das partes, desde que requerido até 48 (quarenta e oito) horas antes do início da sessão e deferido pelo relator; (NR)
§ 1º Nos casos previstos neste artigo, o relator retirará o processo da pauta de julgamentos eletrônicos e o encaminhará ao órgão colegiado competente para julgamento presencial, com publicação de nova pauta. (NR)
§ 2º Nos casos de destaques, previstos neste artigo, o julgamento será reiniciado. (NR)

Não há como negar que o § 2º do artigo 4º do referido ato normativo sugere a interpretação (literal) de, em casos como o que aqui se examina, haver um novo julgamento ("o julgamento será reiniciado"), desconsiderando-se os votos já proferidos em sessão eletrônica. Trata-se, aí, de Resolução emanada do Presidente do STF, a qual, segundo o Regimento Interno daquele Tribunal, tem por fim "complementar o Regimento Interno" (artigo 363, I, do RISTF). Trata-se, pois, de disposição de natureza regimental.

Pois aqui está o cerne da resposta que se deve buscar para a questão enfrentada: pode uma disposição regimental determinar que se desconsidere uma deliberação colegiada já iniciada, ainda que a lei (artigo 941, § 1º, do CPC) preserve eventuais votos já proferidos em determinadas situações? Ou é preciso considerar que o julgamento de um processo é uno (mesmo quando realizado em diferentes ambientes, o presencial e o virtual), e que, uma vez iniciado, só se encerra com a proclamação do resultado?

Quando do julgamento de mérito da ADI 1.127, ao tratar da inconstitucionalidade — que foi reconhecida, registre-se — do dispositivo da Lei n. 8.906/1994 que previa a possibilidade de o advogado da parte fazer sua sustentação oral depois do voto do relator, o Ministro Eros Grau afirmou a existência de um princípio da unidade da decisão do colegiado. Relembre-se o trecho do voto:

"Senhora Presidente, desejaria, antes de mais nada, fazer uma remissão ao voto do Ministro Sepúlveda Pertence, quando se discutiu a cautelar, apontando um defeito de origem: a inadequação da sede do preceito, que certamente não deveria estar no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, mas nas leis processuais. Isso como reverência ao princípio da unidade da decisão do colegiado – que me parece extremamente relevante a ser considerada – e da igualdade das partes."

No mesmo julgamento, o ministro Carlos Britto expressamente afirmou que "a sustentação oral há de se fazer antes do voto do relator, porque o julgamento propriamente dito começa com esse voto". E também o ministro Cezar Peluso, em seu voto naquele mesmo julgamento, afirmou haver uma “unidade do julgamento [colegiado]".

Essa unidade do julgamento colegiado também foi invocada pelo ministro Néri da Silveira quando prolatou voto no julgamento da medida cautelar na ADI 1.105 (em que se decidiu suspender a eficácia daquele mesmo dispositivo legal, que posteriormente veio a ser declarado inconstitucional na ADI 1.127, que autorizava a realização de sustentação oral depois do voto do relator). Disse . Néri da Silveira o seguinte:

"Nosso procedimento compõe-se de fases distintas: a postulatória, a de instrução, a dos debates e, após, a fase do julgamento. Assim em primeiro grau, como nos tribunais. Em primeiro grau, na audiência de instrução e julgamento, encerrados os debates, o juiz pode proferir, desde logo, a sua decisão na própria audiência, ou posteriormente; mas, se o fizer na audiência, não há intervenção das partes, durante o tempo em que profere o decisum. Nos colegiados, a unidade da decisão obtém-se com os votos dos seus membros; não é tomada apenas com o voto do Relator, que não é, por si só, representativo da decisão; quando o último voto é colhido, só aí, tem-se a decisão como tomada. Então, há uma unidade nessa decisão[.]"

Fora de dúvida, então, que a decisão proferida por um Tribunal é una. E essa unidade não significa apenas que o acórdão, embora formado por diversos votos, é um só pronunciamento. Significa também que, uma vez proferido o primeiro voto, teve início o julgamento, que só se encerrará com a proclamação do resultado.

Assim, admitir-se a aplicação da previsão regimental, contida no texto da Resolução n. 642/2019 do STF, seria aceitar que, mesmo já tendo sido iniciado o julgamento uno de um processo, seria possível desconsiderá-lo e se dar início a um novo julgamento, como se aquele primeiro não tivesse existido.

Não se extraia daí que se esteja a sustentar a impossibilidade de um ministro do STF pedir destaque no julgamento que se iniciou em ambiente eletrônico a fim de transferi-lo para o julgamento presencial. Isso é, evidentemente, possível. E é perfeitamente justificável pela necessidade, que o magistrado eventualmente sinta, de debater oralmente com a turma julgadora os detalhes da causa, que podem ser extremamente complexos. É, também, uma forma de com isso provocar uma dilação no tempo do julgamento, que poderá ser útil para a formação de seu convencimento acerca das matérias discutidas. O que não se pode é considerar que esse pedido de destaque após o início do julgamento no plenário virtual seja uma forma de desconstituição do julgamento já iniciado e dos votos já proferidos.

Tem-se, então, que a remessa do processo do ambiente eletrônico para o plenário presencial faz apenas com que o julgamento, já iniciado, prossiga em novo ambiente, com a participação presencial dos integrantes da turma julgadora. E se é uma continuação de julgamento já iniciado, é irrecusável a incidência do disposto no art. 941, §1º, do CPC, que não pode, evidentemente, ser minimizado por ato infralegal e que, em rigor, tem como objetivo disciplinar atividade administrativa dos Tribunais. Em suma: não há como interpretar o § 2º do art. 4º da Resolução n. 642/2019 do STF sem considerar a regra do § 1º do art. 941 do CPC que preserva eventuais votos proferidos nos casos que especifica. O "reinício" do julgamento nele referido só pode ser compreendido como "retomada" de um julgamento já iniciado em ambiente virtual, a partir de então em ambiente presencial.

Será, portanto, perfeitamente possível que os ministros que já haviam votado modifiquem seus votos, uma vez que ainda não terá ocorrido a proclamação do resultado do julgamento. Não se poderá, todavia, admitir que seja alterado o voto do ministro que, já tendo se manifestado, foi substituído durante o julgamento.

Aplicado esse raciocínio ao caso concreto de que ora se trata, pode-se afirmar que, no caso da "revisão da vida toda", o julgamento do RE 1.276.977 prosseguirá de forma presencial, devendo ser computado o voto do ministro Marco Aurélio e, por conta disso, não podendo votar o ministro André Mendonça.

Alexandre Freitas Câmara é desembargador no TJ-RJ, doutor em Direito, professor da FGV-RJ e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual.

Cassio Scarpinella Bueno é advogado, doutor em Direito, professor da PUC-SP e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual.

Fonte: CONJUR


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