A Justiça Restaurativa não se resume a um método especial voltado à resolução de conflitos – apesar de contar com um rol deles, como, por exemplo, o processo circular –, pois tem como foco principal a mudança dos paradigmas de convívio social, por meio de uma série de ações, nas esferas relacional, institucional e social, coordenadas e interligadas pelos princípios comuns dos valores humanos, da compreensão, da reflexão, da responsabilidade individual e da corresponsabilidade coletiva, do tratamento dos danos, do atendimento das necessidades, do fortalecimento da comunidade e da paz.
Portanto, o objetivo final da Justiça Restaurativa é promover a construção de sociedades em que as relações sejam pautadas pela lógica relacional do cuidado, nas quais cada qual se sinta e seja responsável por si próprio, pelo outro e pelo meio ambiente, ou seja, instituindo a ideia de corresponsabilidade, de cooperação e de um poder com o outro, de forma a deixar de lado esse poder sobre o outro, que é causa de tanta insatisfação e, por conseguinte, de violência.
O artigo 1º, do Provimento nº 35, de 11 de dezembro de 2014, da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, e o artigo 1º, da Resolução nº 225, de 31 de maio de 2016, do Conselho Nacional de Justiça, definem a Justiça Restaurativa nos seguintes termos:
A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado na seguinte forma:
I) é necessária a participação do ofensor, e, quando houver, da vítima, bem como, das suas famílias e dos demais envolvidos no fato danoso, com a presença dos representantes da comunidade direta ou indiretamente atingida pelo fato e de um ou mais facilitadores restaurativos;
II) as práticas de Justiça Restaurativa serão coordenadas por facilitadores restaurativos capacitados em técnicas autocompositivas e consensuais de solução de conflitos próprias da Justiça Restaurativa, podendo ser servidor do tribunal, agente público, voluntário ou indicado por entidades parceiras;
III) as práticas restaurativas terão como foco as necessidades de todos os envolvidos, a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou indiretamente para o fato danoso e o empoderamento da comunidade, destacando a necessidade de reparação do dano e da recomposição do tecido social rompido pelo fato danoso e as implicações para o futuro.
O Núcleo de Justiça Restaurativa é um espaço ideal, formado pelas pessoas que se dedicam, voluntariamente ou não, à efetivação da Justiça Restaurativa, e constitui-se como o centro disseminador dos princípios e dos valores da Justiça Restaurativa para toda a comunidade local. Deve contar com um ou mais espaços físicos em que ocorrerão as atividades voltadas ao desenvolvimento da Justiça Restaurativa enquanto política pública e às práticas e aos procedimentos restaurativos de diálogo, de tomada de decisão, de reflexão e, ainda, de resolução/transformação de conflitos.
O Núcleo de Justiça Restaurativa, quando implantado com a participação do Poder Judiciário, contará com um Juiz coordenador, nomeado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos termos do Provimento CSM nº 2416/2017, que também integrará o Grupo Gestor Interinstitucional local.
Em termos de estrutura física, o Núcleo de Justiça Restaurativa, para se configurar como local adequado para o atendimento restaurativo, conforme o artigo 6º, da Resolução CNJ nº 225/2016, e o artigo 8º, do Provimento CG nº 35/2014, deverá:
I) ser estruturado de forma adequada para receber os seus integrantes e as pessoas envolvidas direta e indiretamente nos conflitos, além de representantes da comunidade;
II) prover segurança para que os participantes das práticas e dos procedimentos restaurativos possam expressar os seus mais profundos sentimentos e contar as suas histórias de vida, com a garantia de que tudo será resguardado por absoluto sigilo e de que a integridade física e psíquica dos participantes será preservada;
III) promover articulações e manter diálogo constante com o Grupo Gestor Interinstitucional da Justiça Restaurativa local (GGIntJR) e com os diversos setores da comunidade, de forma a construir fluxos internos e externos, para que a participação comunitária nas práticas e nos procedimentos restaurativos e demais ações seja efetiva e para que as soluções de convivência construídas a partir destes ganhem reverberações externas, de forma que os espaços sejam disseminadores dos princípios, dos valores e das práticas da Justiça Restaurativa para as instituições e para a sociedade em geral.
O espaço físico do Núcleo de Justiça Restaurativa pode ser instalado em imóvel próprio, dentro do Fórum, nas dependências de outras instituições (como escolas, CRAS, CREAS, dentre outras) e/ou em espaços comunitários, conforme as possibilidades de cada localidade.
De qualquer forma, é importante que, se e quando possível, o espaço do Núcleo de Justiça Restaurativa seja implantado em imóvel próprio, de forma a marcar, simbolicamente, que a Justiça Restaurativa pertence a toda a comunidade e não a uma instituição especificamente.
Está na essência da Justiça Restaurativa que ela deve ser construída “pela” comunidade, “com” a comunidade e “para” a comunidade, compreendendo-se, neste caso, a “comunidade” em seu sentido amplo, ou seja, o coletivo de pessoas que integram órgãos de Poder e instituições públicas e privadas, bem como coletivos informais e a sociedade em geral, reunidas pelos objetivos comuns da Justiça Restaurativa. Nestes termos, a Justiça Restaurativa se implementa e consolidada, paulatinamente, como fruto do trabalho coletivo de toda a comunidade, sempre pautada pelos princípios e valores restaurativos fundantes e norteadores.
O juiz faz parte da comunidade e, portanto, quando propõe a implantação da Justiça Restaurativa, necessariamente deve se articular com a comunidade local (instituições públicas e privadas, coletivos informais e sociedade em geral), formando o Grupo Gestor Interinstitucional local, o que significa que o Poder Judiciário está integrado com seu entorno comunitário e os serviços existentes, sendo ele, neste primeiro momento, o anfitrião, que convida os demais atores sociais a repensar as formas de convivência e a construir coletivamente caminhos rumo a uma sociedade mais justa e humana.
E a participação comunitária na construção política da Justiça Restaurativa e na sua base de sustentação incentiva e garante que representantes da comunidade estejam presentes nas práticas restaurativas para que possam oferecer suporte às necessidades de todos os envolvidos, direta ou indiretamente, no conflito, em procedimentos de resolução de conflitos plurais, dialógicos e coletivos, como ocorre nos processos circulares. Ademais, essas pessoas levam dali aprendizados e se articulam para atuar, preventivamente, nos fatores motivacionais da violência de forma a desarmá-los.
O Grupo Gestor Interinstitucional da Justiça Restaurativa (GGIntJR) em cada localidade configura-se como um coletivo interinstitucional, intersetorial e multidisciplinar, composto por gestores com poder de decisão, ou por representantes por estes indicados, de órgãos e entes públicos de diversos setores e áreas, bem como, de instituições públicas e privadas, de coletivos e da sociedade em geral, conforme mencionado acima, sempre com a participação do Juiz responsável pela Justiça Restaurativa, e que se reúne periodicamente, cujo funcionamento e atuação se darão de forma sistêmica e cooperativa.
O GGIntJR local contará com a participação de um Juiz, nomeado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos termos do Provimento CSM nº 2416/2017, como responsável pela implantação do projeto e que, nestes termos, representará o Poder Judiciário nesse coletivo, em colaboração e articulado com os parceiros dos diversos setores da comunidade local.
Objetivo Geral: implantar e enraizar a Justiça Restaurativa como política pública local.
Objetivos Específicos: (I) acompanhar as ações de implementação do projeto de Justiça Restaurativa, criando fluxos que possibilitem o fortalecimento da identidade da Justiça Restaurativa como política pública local; (II) implementar políticas públicas e ações que visem a suprir as lacunas e os fatores motivadores da violência e da transgressão, a partir das informações advindas das práticas restaurativas e de outras fontes; (III) articular os serviços públicos e as ações institucionais e comunitárias para que atuem como Rede de Proteção Social/Rede de Garantia de Direitos; (IV) garantir suporte aos trabalhos restaurativos realizados, promovendo a mobilização da sociedade, dos serviços e projetos públicos e privados, para que participem das práticas restaurativas; e, por fim, (V) disseminar o ideal da Justiça Restaurativa em suas instituições.
A Justiça Restaurativa, por meio de seus métodos e suas técnicas, trabalha conflitos que dizem respeito às relações entre as pessoas, e destas com a comunidade e com o Meio Ambiente, independentemente de como esses conflitos são classificados pelo ordenamento jurídico e pelo Sistema de Justiça.
Os critérios observados pela Justiça Restaurativa, para que um conflito seja trabalhado por meio de seus métodos e suas técnicas próprias, não levam em consideração a nomenclatura ou classificação atribuída pela lei, mas sim situações como complexidade dos fatores que levaram ao ato que causou o dano e necessidade de suporte aos envolvidos; necessidade reparação dos danos, materiais e psíquicos, para quem os sofreu; como os danos, materiais e imateriais, irradiaram efeitos no contexto comunitário das pessoas envolvidas indiretamente no conflito; necessidade de fortalecimento da comunidade do entorno para lidar com o conflito e com as suas consequências para o futuro.
Portanto, os conflitos oriundos de todas as áreas do Sistema de Justiça, como Infância e Juventude Infracional e Protetiva, Cível, Criminal, Execução Criminal, Família e Sucessões, Trabalhista, Previdenciária, Empresarial, de qualquer esfera do Poder Judiciário, em tese, podem ser derivados para serem trabalhados por meio de métodos e técnicas da Justiça Restaurativa.
Em princípio, não existem quaisquer proibições legais para que qualquer situação, classificada em qualquer área do Sistema de Justiça, seja derivada para o trabalho na Justiça Restaurativa.
De qualquer forma, tem-se consciência de que alguns casos devem contar com um maior preparo prévio para fortalecimento das pessoas, antes da participação efetiva em um método restaurativo, especialmente situações que implicam desequilíbrio de forças decorrentes de violências estruturais e/ou culturais. E também se sabe que o ordenamento jurídico apresenta, para determinadas situações, maiores possibilidades de derivação para a Justiça Restaurativa do que em outras.
Os limites para a atuação da Justiça Restaurativa não se encontram externamente, na lei, mas sim em seus próprios princípios norteadores. Por exemplo, um dos princípios fundantes da Justiça Restaurativa é a voluntariedade quanto à participação. Portanto, depois de todos os esclarecimentos que são feitos às pessoas separadamente, na primeira etapa do procedimento (como ocorre no pré-círculo), estas têm todo o direito de, consciente e livremente, manifestar o desejo de não participar, situação em que o método restaurativo não acontecerá, sem prejuízo da possibilidade de se efetivar outras ações que possam oferecer suporte e cuidar dessas pessoas.
O trabalho por meio de métodos restaurativos para resolução de conflito tem como foco as pessoas e suas relações, independentemente de o conflito estar ou não judicializado em um procedimento ou processo judicial. Portanto, é possível que um conflito seja trabalhado em métodos restaurativos mesmo que não exista um procedimento ou processo judicial.
A propósito, os métodos restaurativos apresentam melhores resultados quando o trabalho restaurativo não tem a interferência, prévia ou posterior, de uma medida judicial imposta em um processo, o que ocorre quando o conflito não está judicializado ou quando o conflito é derivado, logo no início, para fora do processo e para a prática restaurativa, com posterior homologação dos acordos e extinção do processo.
Todavia, as práticas restaurativas podem ser utilizadas para a humanização de medidas impostas (o que não torna estas restaurativas na essência), como ocorre, por exemplo, com a utilização de processos circulares para a realização do Plano Individual de Atendimento (PIA) que precede o cumprimento da medida socioeducativa em meio aberto por adolescentes em conflito com a lei, para a reflexão sobre a convivência e a resolução de conflitos em unidades de internação ou prisões, para reinserção de egressos do sistema prisional em suas comunidades, para reflexão junto àqueles que são acusados por crimes ligados à Violência Doméstica contra a Mulher, para empoderamento das vítimas e cuidados para com esta, dentre outros.
As práticas restaurativas são o conjunto de ações e metodologias/procedimentos voltados ao trabalho nas três dimensões da Justiça Restaurativa, dentre as quais estão, como mencionado, as metodologias, os métodos ou os procedimentos (sinônimos), inclusive voltados à resolução de conflitos e também a outros fins.
As metodologias ou os procedimentos são o gênero, em que estão as espécies processo circular/círculo de construção de paz, conferências de grupos familiares, conferências vítima-ofensor-comunidade, círculos restaurativos (baseado na CNV).
Dentro da espécie processo circular/círculo de construção de paz estão as subespécies: círculos de resolução de conflito, de diálogo, de convivência, de celebração etc.
Os métodos ou procedimentos de Justiça Restaurativa podem ser utilizados em situações que se originam de uma situação conflitiva ou de uma situação, em princípio, não conflitiva. Todavia, é questionável essa classificação como “não conflitiva”, tomando em conta que, ainda que, aparentemente, não haja uma situação de conflito aparente na origem, é comum e provável que os conflitos relacionais surjam durante o procedimento restaurativo.
Portanto, é possível falar em metodologias ou procedimentos, especialmente as subespécies do processo circular/círculo de construção de paz, voltados a situações que se originam de um conflito (processo circular de resolução de conflito) e outros que se voltam a situações que não se originam de uma situação de conflito (círculo de diálogo, de convivência, de celebração, de formação de consenso etc.).