MUSEU DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Comunicado

“O DIA EM QUE O PROFESSOR PINTO PEREIRA NÃO DEU SUA AULA".

Corria o mês de outubro de 1954. São Paulo ainda aguardava, no TRE, a proclamação final do pleito disputado por Jânio Quadros, Prestes Maia, Ademar de Barros e Wladimir Pizza, com vistas ao Palácio dos Campos Elísios. O Senado Federal também estava na pauta dessa maratona, vencida por Áureo Soares Moura Andrade. A apuração transcorria lentamente, sem o progresso do voto informatizado, recentemente implantado no País, que deu maior legitimidade à manifestação do eleitor.

Numa sala de aula da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, do 3º andar, os alunos do quarto ano matutino aguardavam o Mestre, sempre pontual, de Direito Internacional Público. Era o professor Manuel Francisco Pinto Pereira, já adiantado nos anos, que ministrava a referida disciplina, em substituição a outro professor, na condição de “coringa”.

O bedel passava o livro de presença pelas carteiras, colhendo as assinaturas dos moços, quando um deles, colocando-se de pé, pediu a palavra naquela manhã do dia 15 de outubro, para enaltecer a figura do lente, traçando num breve “speech”, que durou pouco mais de cinco minutos, sua carreira.

Pinto Pereira, silencioso e surpreso, ouviu as palavras do aluno e, ao cabo de seu discurso, recolheu da mesa as fichas preparadas para essa aula, balbuciou algumas palavras de agradecimento, quase inaudíveis e, com os olhos brilhando, amparado pelo bedel deixou a sala, visivelmente emocionado...

Dois anos depois, a 30 de julho de 1956, falecia o velho professor, sendo o seu corpo velado na Sala dos Estudantes, no andar térreo da Faculdade, de onde o féretro saiu para o cemitério da Vila Mariana.

As pegadas do Mestre

Manuel Francisco Pinto Pereira nasceu no município de Silvestre Ferraz hoje Carmo de Minas, no dia 27 de maio de 1889, onde fez o curso primário e o ginasial, tornando-se depois aluno da Faculdade de Direito, em março de 1909. Tinha, então, pouco menos de vinte anos e declarava, no requerimento de sua matrícula, ser filho de Laureana Pinto Pereira, com omissão do nome do pai.

Ao concluir o curso de bacharelado, em 1913, era o mais brilhante aluno dessa turma, obtendo o conceito máximo, de grau dez, em todas as matérias ministradas no quinto ano.

Formado em ciências jurídicas e sociais, viu-se nomeado Promotor Público de Santo Antonio do Machado, em seu Estado de origem, tendo exercido os cargos de juiz municipal, em Muzambinho, além de professor de português no Liceu Municipal da mesma cidade.

Posteriormente, passou a advogar nessa região, inclusive na cidade de Franca, Estado de São Paulo, época em que resolveu escrever o livro “A mulher no Brasil”, editado por C. Teixeira e Cia., em 1916, festivamente recebido pela crítica especializada, com destaque para a opinião de Olavo Bilac, que vislumbrou, na pessoa do jovem autor da obra, “um escritor de raça”.

Daí para o sucesso foi um passo, tendo Júlio Mesquita, diretor do jornal “O Estado de S. Paulo” se interessado por seu trabalho, abrindo-lhe honroso espaço nesse matutino, e onde Pinto Pereira teve a oportunidade de conviver com os homens da imprensa, sem abandonar o objetivo maior de sua vida, no magistério superior.

Tinha 30 anos quando disputou, pela primeira vez, um espaço na Congregação da Academia, logrando conquistar o título de livre-docente de Direito Público e Constitucional, obtendo a mesma laurea acadêmica, mais tarde, para lecionar Direito Internacional Privado. O desejo ardente de atingir o ponto mais elevado da carreira, já forrada desses títulos, levou-o a submeter-se a novo concurso para a cadeira de Direito Civil, também disputada por dois grandes opositores, Lino de Moraes Leme e Alvino Lima, em 1936, sem contudo conquistar a cátedra, mas tão-só o título de livre-docente dessa disciplina.

Perseverante, inscreveu-se, ainda, na cadeira de Legislação Social, recentemente incluída no “curriculum” da Faculdade (1937), para a qual, todavia, não apresentou a devida dissertação, na forma da lei, por motivo de doença, sagrando-se vencedor nesse importante concurso o professor Antonio Ferreira Cesarino Júnior (1939).

Prestígio intelectual

A contribuição científica de Pinto Pereira, nos domínios de Direito Internacional e Público (1919), foi reeditada em 1920, com lisonjeiro prefácio de Clóvis Bevilacqua, não sendo de menor valor seus estudos, dados a lume em revistas especializadas, sobre o problema da ausência no Direito Civil e a questão do casamento e divórcio no campo do Direito Civil Internacional.

Nessa época, o voto feminino (só admitido no sistema eleitoral brasileiro em 1932), já era objeto de intenso debate nos meios culturais, como ele próprio recorda em longa apreciação do momentoso tema, no seio da Assembléia Geral Constituinte, de 1891, tendo assumido postura favorável à admissão da mulher no corpo político da Nação (cf. op. cit. pág. 131/148).

Em 1932, com a eclosão do Movimento Constitucionalista em São Paulo, alista-se no corpo de voluntários para combater a Ditadura, ao lado de Ernesto Leme, seu dileto amigo e colega de magistério, partindo ambos para o “front”, em Queluz, onde os dois recebem o batismo de fogo, seguido de combates na Vila Queimada, Itapira, Moji-Mirim, entre outros lugares, até o término da luta, em fins de setembro daquele ano.

Após o armistício, passa a reger nesta capital, no Colégio Universitário (1934) a cadeira de latim, que dominava com perfeição, sendo nomeado pelo Governador do Estado, J. J. Cardoso de Mello Neto, em 1937, Procurador da Justiça Militar, cargo esse que deixou de exercer com o advento do chamado Estado Novo, em virtude de a Constituição outorgada em novembro de 1937 proibir a acumulação de cargos (art. 159).

O maior sonho de Pinto Pereira e, quiçá a causa de suas freqüentes crises de melancolia, foi o desejo jamais realizado de tornar-se professor catedrático de umas disciplinas para as quais se vira tantas vezes habilitado, como livre-docente. Esta era, segundo refere Ernesto Leme, sua verdadeira e única ambição, conforme se pode verificar da homenagem que lhe foi prestada, na Congregação da Academia, no trigésimo dia de seu falecimento (cf. “Revista da Faculdade de Direito”, vol. LI, 1956, págs. 285 e segs.).

Contudo, com fundamento em parecer emitido, num caso análogo, pelo então Consultor-Geral da República, Odilon da Costa Manso, Pinto Pereira foi declarado estável como servidor público, percebendo a remuneração correspondente ao cargo de Professor Catedrático da USP.

O velho mestre, bastante alquebrado, continuava a trabalhar cuidando de suas aulas, bengalando pelos corredores das Arcadas, com visível declínio físico, segundo anotou Célio Debes, da turma de 1950, com alusão à sua fama de grande tribuno (cf. “Evocações da Turma Acadêmica de 1950”, pág.9), cuja observação, neste particular, é abonada por todos aqueles que tiveram o privilégio de ouvi-lo, ainda no gozo de plena saúde, como o segundanista Dirceu de Mello que, juntamente com outros acadêmicos, participou da memorável “Assembléia Rui Barbosa”, organizada pelo saudoso mestre, por ocasião da comemoração do centenário de nascimento do grande baiano (1949).

Na antevéspera de sua morte, Pinto Pereira recebeu a visita de dois colegas de Congregação, o citado Professor Ernesto Leme e o Magistrado José Soares de Melo, a quem o moribundo, pressentindo a proximidade do desfecho letal, ofereceu um relógio de pulso, como presente.

Homenagens póstumas

Uma singela dedicatória, lançada no rosto do livro – “O Sujeito do Direito nas Fundações Privadas” - , publicado em 1936 e reeditado em 1955, revela a distância social que separava o berço humilde da escrava Laureana, que lhe deu a vida, da poltrona que Pinto Pereira iria ocupar na Academia do Largo de São Francisco, ombreando-se com os maiores vultos da ciência jurídica do País.

Não foi por outra razão que os jornais de São Paulo, no dia seguinte ao seu passamento, abriram largo espaço em suas colunas para evocar a figura insígne de Pinto Pereira, hoje lembrado numa placa de via pública no bairro do Brás, entre as ruas Sampson e Almirante Barroso, resultante da Lei nº 5.453 de 30 de dezembro de 1957, promulgada pelo então prefeito da Capital, Adhemar Pereira de Barros.

Na Assembléia Legislativa do Estado, foi aprovado em Plenário, em regime de urgência, requerimento de iniciativa do Deputado Abreu Sodré, propondo inserção dos anais da Casa, um voto de profundo pesar, tendo ocupado a tribuna, enaltecendo a personalidade e a cultura jurídica do extinto, o referido parlamentar, bem como o Deputado Luciano Nogueira Filho, com expressiva participação de todas as bancadas, nessa manifestação.

É muito difícil separar a glória do Mestre, da figura humilde daquela pobre mulher que, recém emancipada do cativeiro, dera à luz um menino destinado a tornar-se o orgulho de sua raça, e que, economizando as migalhas de seu trabalho, penosamente obtidas como lavadeira, reuniu o pecúlio suficiente para encaminhar o rebento à escola, de maneira a lhe amparar os primeiros passos, na aventura da vida.

Foi longo o percurso de Pinto Pereira, como anotou, comovido, seu ilustre panigerista e colega de Congregação, entre o lar humilde da escrava e a suprema dignidade de Professor de Direito, em sua “Velha e sempre nova Academia”, que alcançou, embora com os pés sangrando, de onde partiu naquela manhã sombria de 31 de outubro de 1956, aos sessenta e sete anos, para o seu merecido descanso, carregado pelos braços de seus queridos alunos.

Vale a presente evocação, como singela homenagem, do mais obscuro de seus pupilos, a um dos maiores mestres de civismo, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no “Dia do Professor”!


Emeric Lévay – foi Desembargador Coordenador do Museu do Tribunal de Justiça de São Paulo, Professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie - Membro da Academia Paulista de História - do Conselho Estadual de Honrarias e Mérito e Sócio-titular do I.H.G.S.P.


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